quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

(O texto que se segue foi lido pelo autor na apresentação livro ALBUM 1973-2003, com fotografias de MANUEL MAGALHÃES, Edições Caixotim, na Quinta da Macieirinha - Museu Romântico, Porto, a 25 de Março de 2004)
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      Penso que a arte de que actualmente se fala preocupa-se demasiado com as questões humanas, demasiado humanas. Por exemplo, com os problemas sociais, psicológicos e políticos.
       Tal como na Moral, em que o indivíduo quando apenas reflecte sobre si mesmo acaba por perder a consciência da realidade que o cerca e o ultrapassa, vendo assim retrair-se o campo do seu pensamento e da sua sensibilidade, também a Arte que se reduza aos interesses de uma sociedade e não se abra ao outro perde a sua força e a sua fecundidade. Deste modo, degrada-se e passa a ser somente uma decoração do nosso espaço envolvente. Coloca-se "ao serviço de", deixando de ser obra para se tornar apenas produto. Acaba mesmo por imitar todas essas realizações da técnica que, cada vez mais, impõe sobre nós o seu domínio. Essa arte fica, desde então, submissa, subordinada à utilidade que dela se faz em domínios que lhe são estranhos. Junta-se ao vício dominante do mundo moderno, que é o do espectáculo por si mesmo.
       Em consequência, perde a sua liberdade. Cessa de concretizar, nas suas obras, essa parte do pensamento humano pela qual o mundo é livre, e que se opõe ao pensamento científico, o qual não pode conceber as coisas senão de forma determinada, ou seja, não libertas.
       Nunca ninguém assistirá ao fim deste diálogo necessário entre o pensamento pelas formas, a Arte, e o pensamento pelos números, a Ciência. Mas é terrível imaginar que o primeiro acabará diante do todo económico ou do todo tecnológico, afinal diante de tudo que é mensurável. Esta resignação, esta capitulação, será mortal.
       Não se trata aqui de criticar uma arte moderna que terá recusado a semelhança. A expressão "arte abstracta" - como quase todas as expressões que designam um movimento artístico - é estúpida. A arte abstracta é, pelo contrário, uma arte que se aproximou do concreto, das formas materiais e bem reais, mas que não sabemos nomear. Ora, o nosso espírito, por indolência, tem tendência à acreditar que aquilo que não podemos nomear não existe. A arte abstracta mostrou, porém, que é isso mesmo que existe antes de tudo o resto.
       Se a expressão "arte abstracta" é estúpida, a expressão "arte conceptual" é absurda. Os conceitos nada têm a ver com a Arte. Desde o século XVIII, se não antes, é sabido que a arte não tem que sujeitar-se a regras nem seguir ideias. A arte concerne apenas às formas, tal qual elas se apresentam, fechadas, sem sentido, pelo que valem em si mesmas e muito para além das opiniões que possamos ter sobre elas. Aquele que não entrar neste pensamento pelas formas, liberto de todas as ideias sobre isto ou sobre aquilo, não estará sequer no limiar de se tornar um artista.
       É neste ponto que me assalta uma dúvida terrível. As obras de arte abstracta não são á priori melhores do que as outras, mas elas possuem essa virtude de obrigar o pensamento a colocar-se perante o único e verdadeiro problema, que é o ritmo das formas no espaço. Acabaram-se as discussões e considerações históricas, políticas, morais, etc. que permitiam a tantos maus críticos repetirem-se. A arte abstracta cinge-nos a falar exclusivamente daquilo de que se trata.
       Contudo... a minha terrível dúvida é que se encontram entre os críticos, como por toda a parte, pessoas que não são de modo nenhum sensíveis às formas. Tal como há pessoas que são nulas a matemáticas e que, nem por isso, são idiotas. Submersas pela onda das formas libertadas, os maus críticos agarram-se aos conceitos mínimos que estavam à mão. Nestas obras, eles foram buscar a ideia do artista. o que nunca se deve fazer. Toda a obra de arte é uma vitória de ma forma sobre uma ideia. E não existe progresso em arte se uma obra não valer mais, à priori, que uma obra de há três mil anos. Há um progresso na estética, no pensamento sobre a Arte. ao longo dos tempos, ele tornou-se mais lúcido, mais consciente da pureza do seu objecto. a tal ponto que as obras classificadas "conceptuais" podem ser excelentes por razões plásticas, não obstante os conceitos que a elas se possam aplicar ou nelas supor.
       Para se pensar a arte, a fotografia é um campo de aplicação privilegiado. Ao passo que a pintura, por exemplo, se encontra doravante isenta de tudo o que aí se quis indevidamente misturar (religião, moral, política, expressão pessoal, etc.), a produção fotográfica está ainda sujeita a utilizações (moda, publicidade, etc.) que oferecem ao teórico a oportunidade para saber distinguir o que nisso releva da estética. Esse discernimento torna-se a pedra de toque para provar a autenticidade desta forma de juízo. O alcool (CN 2 CH 2 OH) pode colocar problemas ao médico, ao moralista, ao sociólogo, mas esse problema não preocupa o químico, que estuda o alcool no que ele é em si mesmo.
       Para aquele que perspectiva o seu pensamento pelo olhar, a fotografia oferece um domínio privilegiado do visual, que vai da luz à matéria. Em relação às outras artes, a fotografia torna as coisas quer mais claras quer mais tangíveis A luz é a sua razão e o elemento em que ela circula e se desdobra, em contraponto com a sombra, uma e outra tornando-se visíveis. mas tal como a luz, revela por si mesma as texturas mais finas da matéria, o seu ponto, o seu grão, com uma precisão e uma sensualidade que nenhuma outra arte pode oferecer.
       Entre luz e matéria, a fotografia não decompõe a realidade em sulcos de ondas e de átomos. Ela redobra a presença das coisas e dos seres. Ela faz passar a sua aparência exterior para uma presença que entra na intimidade do que há de mais profundo em nós. Ela só conhece as superfícies acariciadas pela luz, mas para nós essas superfícies revelam-se como afloramentos de espessuras da matéria. E a palavra-chave da Fotografia é a de Frederico Nietzsche: "Nada é mais profundo que a pele".
Jean Claude Lemagny

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