domingo, 28 de março de 2010

A Solidão do Fotógrafo

 

O lançamento da obra de Manuel Magalhães «Álbum 1973-2003» ocorre num momento singular da evolução da fotografia e da reflexão sobre a experiência fotográfica. Encontramo-nos, de há uns anos a esta parte, confrontados com profundas transformações que questionam as clássicas mitologias da fotografia. Na verdade, assistimos a desenvolvimentos vertiginosos a nível da sua vertente técnica, ao contínuo desvanecimento da hipótese modernista da especificidade do medium, a alterações no mercado até há pouco imprevisíveis, a novas atitudes conceptuais e a modos diversos de recepção da imagem fotográfica. Parecendo irreversível a tendência para o digital, receia-se a obsolescência ou mesmo o desaparecimento da fotografia, o que neste caso poderia significar, de algum modo, o fim da sua própria história. De facto, qual a capacidade de sobrevivência das imagens tradicionais, de origem fisico-química, perante a realidade avassaladora do comércio dos equipamento digitais? As previsões do InfoTrends Research Group apontam para que, no corrente ano, se utilizem cerca de 300 milhões de aparelhos digitais de captação de imagens, dos quais 60% correspondem a telemóveis com câmaras integradas que, só elas, produzirão 29 mil milhões de imagens. Mais ainda, em termos comparativos, as vendas mundiais de aparelhos deste tipo corresponderão sensivelmente ao triplo das vendas de câmaras digitais, o que significa, em números absolutos, respectivamente 150 milhões e 53 milhões apenas em 2004. Esta tendência parece apontar para uma pulsão para ver tudo e ver tudo já, constituindo-se assim essas novas fotografias, paradoxalmente, como imagens com o mesmo valor fetichista de atestação do real, de reflexo do mundo, tão próprio da fotografia da era pré-digital. Isto no mesmo momento em que deixámos de crer na consistência do estatuto ontológico  do  documento que aparece antes, refere Régis Durand, como uma noção eminentemente flutuante. Parece assim tratarem-se de imagens mais próximas então das polaroides, imagens que servem para tudo, meio de conhecimento, suporte de sensações, gesto de divagação ou pretexto de socialização; em suma, imagens “meio de transporte”, como lhes chama Serge Tisseron. Estas considerações permitem remeter para a observação de Maria do Carmo Serén para quem a fotografia digital não encontrou ainda a sua linguagem, não fazendo mais do que utilizar e tornar mais fáceis velhos processos e soluções da fotografia química. São então diversos os problemas que se colocam neste movimento em direcção à hiper-realidade, desde a saturação de imagens e de signos até, e cito Bernardo Pinto de Almeida, ao facto de «a identificação crítica das situações a partir de uma distância operatória – própria do trabalho artístico – acabar perdendo a sua eficácia no plano das representações. Ora porque não consegue transgredir as fronteiras do próprio plano artístico, ora porque se confunde com outros campos de intervenção visual». Assiste-se pois a uma espécie de diluição das formas de expressão estética e, no caso concreto da fotografia, ao seu irremediável estilhaçar, tanto nas suas práticas específicas como no lugar que ocupa no dispositivo geral das imagens. Em bom rigor, esta situação não deriva do aparecimento das imagens digitais, remetendo antes para as circunstâncias desse momento em que a fotografia começa a ser utilizada maciçamente pelos artistas e a escapar assim a uma lógica estrita do medium. Mas, acrescenta Durand, esses fenómenos de transgressão ou de hibridação derivam em geral de uma lógica ou melhor, de diversas lógicas artísticas, que se apropriam deste ou daquele instrumento, desta ou daquela forma. Chegámos assim a um ponto em que a fotografia se encontra inserida «numa nebulosa de transformações e de simulações que confundem completamente as suas fronteiras e os seus fundamentos ontológicos».

Manuel Magalhães tem sido desta configuração um observador atento e crítico bem como um actor interveniente, essencialmente através da sua continuada actividade artística mas ainda pelas diversas iniciativas no campo da investigação, ensino e divulgação da fotografia. Permitam-me referenciar alguns dos pontos mais fortes deste percurso de trinta anos, afirmando desde já que o seu entendimento da fotografia se sencontra na antítese daquele frenesim predador do “em tempo real” que há pouco referimos. Atente-se, por exemplo, na sua exposição de 1987 no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Enfrentando a arriscada temática do “nu feminino”, Manuel Magalhães evita os perigos dos muitos estereótipos que a ela historicamente foram aderindo, mobilizando no seu tratamento estratégias técnicas e conceptuais. Desde logo, através de uma utilização sofisticada da complementaridade de meios, só ao alcance de quem alia à competência fotográfica outras formações e outras capacidades expressivas. De seguida, questiona a associação plana entre fotografia e representação, operando como que uma suspensão fenomenológica do juízo. Aceitando a inevitabilidade da mediação maquínica, afasta-se da visão modernista da essência do fotográfico pela abertura a outras artes, especialmente a pintura a aguada, e pela manipulação da impressão por um saber fazer artesanal que confere valores matéricos e tácteis à superfície de uma obra tornada irrepetível. Por outro lado, como referiu Joaquim Matos Chaves, o culto dos fragmentos e da irregularidade dos contornos era assim «superlativamente significativa porque “obrigava” o fruidor a ter presente que está perante uma representação do real e não perante o real, que essa representação não é mimética».

Não admira pois que, no ano seguinte, em 1988, surja associado ao projecto Fotoporto, de cuja comissão organizadora veio a fazer parte com Eurico Cabral e Luís Palma, projecto que tinha como um dos seus eixos, nas palavras de Fernando Pernes, «conjugar diversas modalidades da prática fotográfica na actualidade portuguesa e internacional, indiferenciando obras doumentais e de especificidade criativa...» Fotoporto que apresentava um núcleo designado “Fotografia nas Artes Plásticas”, procurando assim dar conta dessa contaminação entre disciplinas artísticas, pressentindo já algum carácter obsoleto na questão dos limites entre uma fotografia “pura” e uma fotografia “outra”. Mas, ainda na mesma manifestação, Manuel Magalhães, toma a seu cargo a importantíssima apresentação de um conjunto de obras de Frederick Flower, iniciativa aliás estranhamente ignorada pelo comissariado da exposição de 1994 no Museu do Chiado. Com o Fotoporto ficava assim demonstrado, se preciso fosse, o seu empenhamento na investigação da história da fotografia em Portugal e, de igual modo, a preocupação pela divulgação dos trabalhos dos autores nacionais e estrangeiros, preocupação que terá a sua expressão mais significativa na fundação da ImagoLucis Fotogaleria com Aníbal Lemos e José Pastor, ainda hoje o única galeria no nosso país dedicada exclusivamente à apresentação de fotografia.

 

Em 1995, Manuel Magalhães apresenta uma exposição na Galeria Diferença, intitulada precisamente “Fotografias 1973-1994”, que se posiciona, compreendemo-lo agora, como um primeiro ensaio para a obra que agora se publica. Parece assim evidente que Manuel Magalhães tem de há muito o hábito de fazer o ponto da sua actividade fotográfica, de sobre ele exercer uma função reflexiva e de nele indagar por linhas de trabalho que são os contributos para os valores consolidados da sua obra. Essa selecção de vinte anos de trabalho é ainda importante por contribuir para uma resposta à questão a que, em 1987, se referia Matos Chaves. Afirmava ele que na prática fotográfica de Manuel Magalhães se podem encontrar-se fases diferenciadas, que se instituem com propósitos e soluções formais que se distanciam com nitidez, o que implica, naturalmente diferentes modos de estabelecer uma relação com o referente. Dir-se-ia pois, acrescentava o mesmo ensaista, que «nela encontramos constantes e variantes, sendo a coerência assegurada não apenas por aquelas, as constantes, mas pelo modo como das variantes se podem deduzir as suas pesquisas no domínio dos enunciados, dos materiais e das técnicas». Em 1995, passou a ser possível identificar como variantes os trabalhos de pendor mais experimental e que encontraram um momento forte precisamente na exposição na Fundação Calouste Gulbenkian.  Por isso não é paradoxal que, na Diferença, Manuel Magalhães apresentasse um belíssimo conjunto de paisagens, parte das quais podemos agora rever, e que vêm a constituir, ao cabo e ao resto, a componente axial da sua actividade fotográfica. Ora, o que é fascinante na questão da paisagem, é o facto de ela sempre ter sido, e provavelmente agora mais do que nunca, um tema ambíguo por excelência na fotografia. A partir do momento em que o modernismo entrou em crise, no neste momento em que o sentido é cada vez mais constituído através das imagens, a questão da articulação entre a paisagem natural e a paisagem cultural reaparece com invulgar intensidade.

Como refere Gabriel Bauret, «é hoje claro que passou o tempo da sublimação da paisagem e da admiração pela magnificência da natureza, tão ligados a uma certa escola americana, para quem contemplar uma paisagem significou  por muito tempo ser marcado pela obra de Deus». Ora, como escrevi então, as fotografias de Manuel Magalhães assumem decididamente uma dimensão humana e secular, e a sua interpretação geral dos elementos naturais está já bem longe das epifanias da natureza sublime dos fotógrafos da modernidade. Os valores tonais prevalecentes são antes o de sumptuosas massas de escuridão pontuadas aqui e ali por rasgões de luz. Escuridão iluminada, como referia Hegel. Este jogo refinado de luz e  sombra é o que possibilita a sugestão  de uma terceira dimensão nos elementos naturais, enfatizando volumes e relevos. Esse recurso expressivo, a par de uma quase total ausência de profundidade de campo é que permite, afinal, uma enfatização dos elementos tácteis da superfície da imagem, o que não deixa de ecoar, de diverso modo, os “Nus” de 1987.

A ambiguidade da paisagem tem também a ver, como afirmou John Szarkowski, com o facto de ela ser agora, para nós, o sítio em que vivemos. E assim, como escreve Lev Manovich, “a paisagem tem igualmente a ver com as imagens das  ligações entre a natureza e as áreas usadas ou edificadas pelo homem”. De certa maneira, pode ser que a paisagem contemporânea seja afinal a cidade, marcada por uma atracção pelas periferias – pela brecha, pelo apodrecimento, pela ruína e pela queda.

Talvez então radique aí o sentido de “A lenda do Rei Ramiro”, trabalho de 1999 em que Manuel Magalhães toma como pretexto o romance recolhido e reconstruído por Garrett para produzir um fascinante e poderoso conjunto de imagens do Candal, suas ruelas e outeiros. Essa ambiguidade que caracteriza hoje a fotografia de paisagem passa também pela relação entre o que os americanos entenderam como “landscape” e “cityscape”, subgéneros cujas fronteiras são cada vez mais trémulas, tornando-se cada vez mais difícil sustentar uma distinção de género entre tópicos como a cidade e a natureza. Por isso muitos fotógrafos  se movem ou no limite fotográfico dessas zonas ou no seu interior, naquilo a que Frits Gierstberg chama “Wastelands”. No seu crescimento desarticulado as metrópoles abandonam zonas no seu interior e recriam no seu centro inesperados subúrbios. Essa nova relação, bem complexa, entre centro e periferia, e os modos de a tratar fotograficamente é um desafio que Manuel Magalhães enfrentou com grande sensibilidade. Compreendendo que a ideia vulgar, determinista, de progresso, que levaria a crer que a cidade se constitui por uma substituição sequencial dos seus elementos estruturantes já não é operacional, pois ela é afinal fragmentária e contraditória, Manuel Magalhães apresenta-nos imagens em que os avatares se acumulam e não se anulam, são infinitamente distantes e afinal contemporâneos, em que os espaços são a um tempo intocados e profanados. Afinal, imagens que se transformam em novas lendas.

Ainda Régis Durand, reflectindo sobre a noção de campo fotográfico, escreve que devemos hoje pensar o que nele se passa não como uma série de mestiçagens ou de transgressões de um medium “puro” mas antes como o desenvolvimento das possibilidades inscritas num campo aberto, cujos termos são exteriores, muitas vezes, à própria noção de fotografia. Certamente que a fotografia, como historicamente a entendemos, não irá desaparecer, mas arrisca-se a ter um estatuto frágil e incerto no meio de uma incessante circulação de imagens, a ser uma alegoria instável, em permanente desequilíbrio, arte do parecer, alquimia do olhar no encontro da luz e da matéria.

Essa é a situação que vivemos, mas nela a fotografia é ainda possível. E, afinal, que melhor prova disso poderíamos desejar do que este magnífico álbum de Manuel Magalhães?

 

Lisboa, 21 de Março de 2004

 

José Afonso Furtado

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